Sempre digo que as bandas aqui de Recife não devem nada a nenhuma outra do Brasil à fora, ou mesmo do mundo. Temos bandas criativas, que muitas vezes com poucos recursos criam sonoridades fuderosas. Mermão, a Ruína é uma delas.
Com a proposta de unir elementos de diferentes gêneros da música extrema, o grupo formado em julho de 2017, flutua por diversas referências indo do crust ao sludge, do hardcore ao doom.
Autofagia, o EP de estréia da banda, produzido por Mathias Severien (Desalma), no Estúdio Pólvora, sintetiza o peso e o caos do som criado pelos pernambucanos ao longo de sua existência. Eu, particularmente, achei o som muito bom para um primeiro registro. Com seis músicas, “Fria Navalha” é a minha preferida, que conta com riffs fritados do black metal, unidos ao hardcore, e d-beat do crust. Como eles mesmos explicaram, o título do EP refere-se ao processo de degradação e ato do homem ou animal nutrir-se da própria carne. A temática do disco traz conceitos da sobrevivência e sentido da vida em um mundo onde nada é solucionado e tudo é exposto de forma degradante.
Pra quem gosta de som com vocal desesperado, andamentos que nos levam a loucura, com riffs que ficam presos na mente, “Autofagia” já mostra que a Ruína não brinca em serviço. Esperamos por um full álbum em breve.
Ruína é: Zé Carlos – Vocal Lucas Guedes – Guitarra Rodrigo Santos – Bateia
Klitores Kaos é uma banda de crust feminista, de esquerda, antifascista. Formada em fevereiro de 2015, pelas vocalista Grace Dias e baterista Débora Mota, a partir de uma vontade e necessidade de bandas formadas só por mulheres no cenário hardcore punk da cidade, com uma ideologia de fato feminista, como uma forma de expressar nossas ideias, criticar o sistema opressor que serve aos interesses da elite burguesa do país, a desigualdade e caos social de nossa cidade, e enfatizando a questão de gênero também. Fazem um som politizado, pesado e cru! Conversamos um pouco com elas e com a ex-vocalista Grace que continua ativa na banda, apesar da distância.
A banda passou recentemente por uma mudança de formação, devido a viagem da vocalista Luma para Portugal. Falem um pouco sobre essa transição.
Acho que uma das principais dificuldades foi a mudança de formação, quem ficaria no vocal, passaram a Thyrza que segurou as pontas em alguns shows importantes que ja estavam marcados. Depois encontrar uma vocal q ficasse permanente era o desafio. Agora já estão mais orientadas as coisas e a batera assumiu o vocal e ta se saindo muito bem, apenas tendo que se ajustar algumas coisas nas músicas.
A Klitores Kaos é uma banda com postura e letras antifascistas. Como é o cenário independente em Belém? Há apoio ou repúdio à postura da banda? A gente recebe muita manifestações de apoio na cena de Belém, muitas minas passaram a ir nos shows depois de um tempo afastadas do cenário, pois se sentiram acolhida com nosso som e letras. Mas claro que há ainda muito machismo, que são expressos através de xingamentos bem baixos na página da banda e até mesmo com assédio de homens em alguns shows. Caras que dizem apoiar a banda, mas tem atitudes super machistas e misóginas, parece que não lêem as nossas letras e nem sacam a ideologia da banda. Apoio que é pura falácia no fim das contas. Somos uma banda de composta por mulheres, feminista e antifascista!
Vocês fizeram um financiamento coletivo para ajudar na gravação do próximo trabalho de vocês e conseguiram angariar os fundos. Como foi esse processo? A galera ajudou na divulgação?
Fizemos no site do vakinha e no começa não tínhamos muita confiança que conseguiríamos arrecadar a grana, mas felizmente valeu a pena a iniciativa pois teve muita divulgação da galera de Belém e de outros Estados, doações da nossa cidade e de fora também, e conseguimos bater a meta que propomos! Aproveitamos pra agradecer novamente todos que ajudaram e divulgaram! Já finalizamos a gravação do EP e esperamos que em breve fique pronto!
Como foi o processo de gravação? Quando o material estará disponível?
O processo de gravação foi algo bem novo pra todas nós, apesar de que já tínhamos passado pela experiência de gravar um tributo a banda Bulimia, tocando uma versão de uma das músicas, gravar nosso próprio som foi diferente, tivemos que ajustar algumas coisas, mas tivemos muito apoio e orientação do Zé Lucas, da banda Sokera, que ta produzindo a gravação do EP, enfim, foi bem emocionante particularmente pra mim registrar nossas músicas próprias, um sonho realizado! O EP ta em processo de finalização da mixagem/produção das músicas, esperamos que em breve fique tudo pronto,pois queremos lançar não apenas em formato digital, mas também físico(inclusive os selos e distros que tiverem interesse em lançar nosso material, só entrar em contato, estamos disponíveis para.conversar, como eu disse,é um procedso novo pra todas nós, de gravação, produção, lançamento, e quem tiver dicas etc para nos passar, agradecemos muito.
Formação anterior da KK
Indiquem 5 bandas do Pará que vocês curtem e que tem o posicionamento ideológico próximo ao de vocês.
Bad Trip, Alcoólicos Anônimos, Setembro Negro, Aurora Punk e Contraponto Crust.
Quais são os planos futuros da banda?
Em relação a planos futuros, agora que eu e Camila estamos morando bem longe de Belém, acho que principalmente manter s banda na ativa, continuar passando nossa mensagem, mediante as várias dificuldades de cada uma das integrantes (manter uma banda no undeground não é fácil, ainda mais sendo só de.mulheres, com ideologia de esquerda/combativa) escrever e compor mais músicas, para podermos gravar um CD completo um dia, tocar em outros Estados onde ainda não fomos e quem sabe um dia fora do país.
Considerações finais.
Agradecemos a oportunidade em poder falar um pouco sobre a esse processo de resistência que é formar e manter uma banda de mulheres, feminista, formada por proletárias/mãe solo/moradoras de periferia/ estudantes/ lgbt, nesses 4 anos de existência da Klitores Kaos. Esperamos ver cada vez mais minas pirando nos nossos shows, se sentindo mais seguras nesses espaços e incentivar a criação de mais e mais bandas de minas!!! Só a Luta muda a vida!!!!
A Bahia nos presenteia com bandas de muita qualidade e uma delas nos inspira na resistência por uma postura concreta e repleta de atitudes do “Faça Você Mesmo” na prática: conheça o blackned crust do Mácula.
A banda se formou em 2010 em Simões Filho/BA. Fale um pouco sobre o começo da Mácula e a cena baiana.
Na
verdade, a Mácula é uma banda que surgiu de um outro projeto chamado “Nuvens
negras”, idealizado a partir das conversas entre Caleb e Italo, após o término
de seus respectivos grupos (Lágrimas de Ódio e Choque Frontal). Ao vir morar na
Bahia, a Debie assumiu o baixo e, assim, ao lado dos supracitados e do Bal,
nosso batera, formamos a Mácula. Iniciamos as atividades tocando músicas já
construídas anteriormente, algumas delas – como Ideias Incendiárias – fazem parte
do nosso repertório até hoje e sintetizam um tanto dos nossos pensamentos e
expectativas.
Embora a Mácula tenha dado seus primeiros passos em Simões Filho (ensaios, encontros e tudo mais), Italo, na época, morava em Camaçari – e hoje, em Salvador, ou seja, dizer que somos um grupo simõesfilhense seria algo um tanto equivocado, rs. Sobre a cena, boa parte das bandas daquele período já não está mais em atividade, outras seguem firmes, como a Orelha Seca e a Asco, a Rancor e a Agnósia (projetos nos quais membros da Mácula também estão envolvidxs), entre outras.
No último ano o selo Crust or Die, o qual vocês são envolvidos fez uma rifa para angariar dinheiro para comprar uma nova guitarra para o Itálo. Vocês conseguiram? Podemos esperar a volta da banda às atividades?
Como você tocou no assunto, queremos aproveitar o espaço para agradecer a todxs aqueles que nos ajudaram de alguma forma, comprando a rifa, compartilhando a ideia, comentando, etc agradecemos demais, pessoal! No entanto, cabe ressaltar que, na realidade, a rifa foi para conseguirmos recursos para a compra de captadores semelhantes aqueles que estavam na guitarra do Italo quando ele a perdeu. Sim, embora não tenhamos conseguido passar adiante todos os números da rifa, ela deu certo. Agora estamos nos reorganizando para a retomarmos os ensaios e continuarmos nossas atividades, ainda mais com dois lançamentos – os splits com a Reiketsu e Extinction Remains – batendo à porta.
Fale um pouco sobre o processo de composição dos sons e sobre os lançamentos dos splits com o Reiketsu e com a Extincion Remains.
Podemos dizer que a Mácula compõem suas músicas em conjunto: um chega com uma base, geralmente Italo e/ou Caleb, passamos as cordas, Bal vai pensando e desenvolvendo a bateria, o instrumental vai sendo passado e todxs, na medida do possível, vão opinando, após essa etapa, Caleb vai encaixando as letras (ele tem um caderninho cheio delas, rs); às vezes acontece de Caleb enviar algum esboço de letra para Italo pensar nas melodias e talz. Como você bem colocou, nesse ano está previsto o lançamento desses dois splits: Mácula e Reiketsu é um projeto de longa data que finalmente se concretizará nesse ano, será nosso primeiro lançamento em vinil, e estamos extremamente empolgados com esse lançamento, pois a Reiketsu é nossa banda irmã, tocamos juntos algumas vezes e a parceria é grande (<3); já o split com a Extinction Remains é algo, de fato, novo: ainda não tocamos nenhuma das faixas, e todas elas foram criadas já para compor um material compartido. Ambos os materiais mostrarão uma nova Mácula, uma Mácula diferente: algumas dessas mudanças, tanto na parte instrumental como na lírica, poderão já ser observadas nas composições que farão parte do split com a Reiketsu (apesar das letras claramente politizadas, um lado mais introspectivo, existencialista – para alguns, diríamos, pessimista toma formas) e se tornarão mais nítidas no material a ser lançado com a E.R. (onde, inclusive, o hardcore crust que caracterizou nossos primeiros trabalhos pouco aparecerá).
Nazifascimo Tropical é um som extremamente atual que foi composto em 2015. Como vocês avaliam o cenário político atual e como ele está influenciando na cena?
O mundo todo parece estar seguindo uma nova onda política que que não nos cheira nada bem, o Brasil apenas confirmou que ele, infelizmente, não é exceção. Começamos a reparar esse declínio, por assim dizer, há algum tempo, em 2015 (ano da composição) isso já se mostrava de forma muito temerária, já era previsto, sabe? Depois de tanto pensar e pesar, tanto refletir sobre, hoje podemos dizer que o momento político do qual compartilhamos e no qual vivemos é, primeiro, uma excelente peneira, pois permite, de certa forma, perceber quem é quem na dita “cena”, através dos posicionamentos que bandas, coletivos e indivíduos assumem; segundo, dizem que não há movimentação quando o período é de acomodação, ou seja, em um momento como este, somos impelidos a agir, a nos mexer e arcar com nossos posicionamentos – não é um bom momento para medrosos. Esse triste cenário que assola todo o mundo tem derrubado máscaras e dividido “cenas”: proporcionando que diversos ratos saíssem do esgoto e dessem as suas caras. As pessoas, aparentemente, têm se tornado menos “apolíticas”; acreditamos que isso possa contribuir para uma movida mais madura e consciente e que, no final, possamos nos mostrar mais fortes.
Indiquem três bandas nacionais que vocês ouvem e curtam o som e posicionamento. Fale um pouco sobre elas.
Só três? Putz! Pode parecer clichê, mas aí vão 3 bandas que estão diretamente ligadas ao Crust Or Die (até pq, caso não acreditássemos nelas, não abraçaríamos seus respectivos lançamentos): 1. Manger Cadavre? – A Manger virou uma banda parceira desde o ano passado, quando fizemos um re-lançamento do “Origem da Queda”. Já gostávamos bastante do trabalho da banda, não só pelo som, mas principalmente pelo posicionamento político da banda, principalmente da Nata, vocalista, sempre muito ativa tanto no underground quanto fora dele. Nesse ano tivemos o prazer de editar o primeiro Full deles, chamado “AntiAutoAjuda”, que trouxe uma temática importante e atual: a questão de como o capitalismo contribui para o surgimento de doenças como a depressão e a ansiedade.
2. Reiketsu – Como falamos anteriormente, são como irmãos para nós, temos compartilhado boas histórias e experiências há algum tempo, sabemos dos corres dos meninos (nem tão meninos, kkkk) e, além de tudo, há uma grande identificação com os sons (letras e músicas).
3. Malespero – Temos enorme apreço por esses mineiros, já compartilhamos espaço e fomos muito bem acolhidos por eles, temos consciência dos corres de alguns integrantes do grupo e do posicionamento do grupo como um todo mesmo, contrário a esse projeto fascista que paulatinamente veio se desenvolvendo no Brasil.
Sabemos que você pediu apenas 3 nomes, mas, embora tenhamos citado 3 bandas do eixo sudeste, seria injusto não aproveitar o espaço para pedir aos leitores que abram seus ouvidos e mentes para as tantas bandas fodas da Bahia e do restante do NE, que há muito vêm trampando e se posicionando e, muitas vezes, por falta de espaço, por situação geográfica e outros tantos fatores continuam esquecidas ou simplesmente encerram suas atividades sem as oportunidades e o espaço dos quais poderiam usufruir.
Quais são os projetos futuros da Mácula?
Bom, estamos à espera desses dois novos álbuns (splits), uma das coisas a fazer é conseguirmos manter uma boa sequência de ensaios e, futuramente, apresentações para espalhá-los como praga pelo mundo afora – ou seja, pronto esperamos convites para infernizá-los em todo e qualquer lugar. Depois, queremos sentar com calma, pensar e desenvolver a ideia de um full-length, projeto que nos persegue há algum tempo.
Considerações finais.
Queremos
agradecê-lo pelo espaço aberto, pelo convite que você e tantos outros nos
fazem, mesmo estando paradxs há algum tempo, para falarmos de nós, de nossos
projetos, de nossas ideias e para enchermos o saco, como bem sabemos, de todxs.
Isso é muito gratificante e nos estimula a não ceder e não parar, mas a seguir
em frente.
Àquelxs que não nos conhecem, abaixo estão alguns endereços virtuais, bem como
nossa caixa postal, para que conheçam um pouco mais, troquem ideias, interajam
conosco:
– Caixa postal
113 – CEP 43700-000 – Simões Filho/BA
Surgida em 2008, em Belém do Pará, e remoldada em 2010, o Contraponto é uma banda que toca em temas como desigualdade social, preconceito e violência de uma forma diferente. Buscando sempre a politização dos espaços em que atua, a banda tem como temática as lutas da classe trabalhadora e da juventude e a construção do socialismo libertário. “Pagando o Pato” é o segundo álbum da banda, que foi lançado em 2018, mas vale a pena ser resenhado.
Ainda com Thyrza Sinely nos vocais, o trabalho teve a bateria gravada no Estúdio AUDIO VJ, com produção de Olívio Portugal. Já as guitarras e baixo foram gravados no no mesmo estúdio, mas com produção de Olívio Portugal e no Quarto do Paulo, com produção de Paulo Wallace. As vozes, por sua vez, foram gravadas no Fábrika Studio, com produção de Paulo Wallace. Mixagem e masterização por Paulo Wallace no Quarto do Paulo.
O álbum, que marcou os 10 anos da banda, se incia com a música “Não é Não”, que contou a participação da Luma (ex-vocalista Klitores Kaos). O som conta com alguns riffs clássicos do crust e uma bateria bem trabalhada. O destaque fica para os vocais de Thyrza e Luma que arrebentam no extremo, mandando a mensagem certeira ” CHEGA DE SUBMISSÃO // MINHA LUTA NÃO É EM VÃO //RESPEITE MINHA REJEIÇÃO// EU QUERO REVOLUÇÃO”. Na sequência os riffs introdutórios de “Início do Fim” já deixam o clima que está por vir: denúncia do golpe e a farsa”democraticamente” eleita de Jair Bolsonaro. As variações de vocais entre o rasgado e o gutural nos passam o mesmo ódio que sentimos ao relembrar de todo o percurso da tomada de poder pela extrema direita. “Barbárie” é um som de apenas 1 minuto e 24 segundos com apenas duas frases, mas que você vai colocar no repeat. “Barbárie II” continua sobre a temática que denuncia o desmonte do SUS, sistema que já foi referência mundial de saúde pública e hoje é constantemente atacado por investidas neoliberais que querem acabar com o serviço gratuito e privatizar tudo. Na metade do disco, temos “Frente Popular” que tem uma pegada mais hardcore punk, muito empolgante. “Realidade Cruel”, por sua vez, fala sobre menores que, em condições de abandono do Estado, acabam no tráfico. “American Way of Life” é som que mais curti, com riffs criativos, d-beat frenético, vocal bem cravado e denúncia do imperialismo estadunidense. “Meritocracia” como se supõe, fala sobre a falácia que nos é empurrada, destaque para as linhas de baixo que ficaram muito boas. “Pagando o Pato” que dá título ao álbum é um dos sons mais bem construídos, com um berro incial de causar medo a todo o sistema S, que financiou o golpe. Fechando, temos “Guerra Inútil” que denuncia a Polícia Militar (que tem que acabar). Os fãs de Wolfbrigade vão curtir muito o som.
Sem dúvidas, esse foi um dos lançamentos excelentes que tivemos ano passado. Sugerimos uma maior atenção na mix, para que o instrumental brilhe tanto quanto o vocal em próximos lançamentos, mas não é nada que tire toda a qualidade criativa da banda. Atualmente, sem a Thyrza no vocal, a banda segue como trio, tendo lançado o single “Desespero” agora em 2019. Ficamos no aguardo de novos lançamentos.
É inegável que o Brasil se tornou um celeiro de ótimas bandas com influência do crust em sua sonoridade. Dentre bandas como No Rest, Mácula, Aphorism, Manger Cadavre?, Nunca, Deadtrack, Distanásia, Warkrust, Rastilho… surge a Väsen Käsi. Mesmo com pouco tempo de existência, conta com qualidade sonora com peso de anos de estrada. Anote esse nome, pois vocês irão ouvir muito sobre essa banda. Confira a entrevista que fizemos com eles.
Foto por Luís Galaverna
A banda começou com outra formação, a qual lançou o excelente EP autointitulado. Falem um pouco sobre essa formação e o processo de composição do trabalho, a temática e o lançamento.
P: Muito obrigado pelo elogio! Quando a banda ainda era apenas uma ideia, eu compus duas músicas, já pensando em como elas soariam em conjunto e como seria seu diálogo umas com as outras. Aí, com a formalização da banda – Paulistinha (guitarra e voz), Bob (guitarra), Marcelo Feijão (baixo e voz) e Gil (bateria) -, compusemos outras músicas e percebemos que algumas delas não possuíam uma conexão, não se alinhavam àquilo que queríamos em termos de som. A princípio, como eu tocava guitarra e cantava, algumas músicas exigiam mais de mim: por vezes, a guitarra era muito exigida, por outras, o vocal tinha uma preeminência. Aí fomos nos adaptando como um quarteto até conseguirmos extrair o melhor que podíamos de cada música. O processo de composição teve muito disso, de tentativa e erro, até alinhar tudo do jeito que queríamos, mas, falando desse modo, parece ter sido um processo amplamente racional em todos os aspectos, só que não foi bem assim: era simplesmente compormos, ouvirmos e decidirmos se era legal ou não (risos). Nesse primeiro registro, tentamos usar cada música para abordar um aspecto diferente: a escravidão, tratada em Ov Fire and Wind, advém das leituras de Frantz Fanon; a vida nas cidades, abordada na Children of the Storm, vem de nossas experiências de vida cotidiana mesmo, sobre o mundo no qual vivemos; a Sentimento do Mundo é mais direta, mais simples, mas foi elaborada em conjunto em um ensaio, onde construímos sua estrutura rítmica e melódica. Durante esse ensaio, conversamos sobre o que estávamos lendo e eu citei o poema “Sentimento do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade. Pegamos um verso do poema e o utilizamos na música – “quando eu me levantar / o céu estará morto e saqueado”. Sobre o lançamento, pensamos em várias formas, mas vimos que quase todas seriam muito caras, e naquele momento não tínhamos as condições materiais para tal: só os custos de um lançamento em vinil pagariam novas gravações, então não valia tanto a pena. Não descartamos nenhuma hipótese sobre lançamento e gostaríamos de lançar em tudo o que desse, tipo vinil, CD, fita cassete, VHS, holograma, em formato ASCII etc (risos), mas tudo depende de variáveis sobre as quais não temos tanto controle, que são os apoios. Vamos trabalhar para que isso seja possível. No que diz respeito à formação, a Vasen Käsi foi formada em 2017, como um quarteto. Éramos eu (guitarra), Bob (guitarra), Marcelo Feijão (baixo) e Gil (bateria). Com o tempo, a banda foi se solidificando, ganhando mais corpo, e as músicas começaram a exigir mais de nós. Como necessitávamos de uma/um vocalista, convidamos a Mars, o que proporcionou o impulso que precisávamos, já que os vocais ocupavam muito espaço dos instrumentistas. Após o show no Soco na Fuça, em São José dos Campos, o Gil saiu, de forma amigável, para organizar sua vida pessoal. Apesar da saída dele, que estava conosco desde o começo, a entrada do Chis (Balanopostite, Eleanora) foi crucial para o som que estamos elaborando atualmente, para nutrir outros aspectos e elementos musicais. Como o Chis vem de uma sonoridade mais extrema, muitos elementos novos foram introduzidos nas músicas, o que aumentou nossa gama de possibilidades de composição.
Após a mudança da formação, Paulistinha deixou o vocal para se dedicar apenas a guitarra e a Mars passou a integrar a banda. Como foi esse processo de transição?
P: A mudança se deu por dois motivos: o primeiro, diz respeito a uma questão de saúde mesmo, já que eu não aguentava mais cantar por causa de dores de cabeça e falta de fôlego; o segundo, pelo fato de que sempre quisemos ter os vocais da Mars na banda. Essa história é engraçada: no nosso primeiro show, ainda como um quarteto, tocamos com a Adacta (Eslováquia) e com a On Crash. A Mars é vocalista da On Crash e assistimos boquiabertos à apresentação. Pensávamos em como seria se ela cantasse conosco. Aí, um bom tempo depois, tivemos um show com a Balanopostite, onde tocam a Mars e o Chis, e assistimos àquilo impressionados. Foi nesse show que percebemos que, definitivamente, eu não aguentaria mais fazer o vocal: terminamos de tocar e eu estava tonto, sem fôlego, suando muito. Deitei no banco do carro e tive de lidar com uma forte dor de cabeça e com enjoo. Demorei algumas horas para me recompor, enfim, foi terrível (risos). Então colocamos um anúncio no Facebook dizendo que precisávamos de vocalista. Surgiram alguns nomes, mas nós queríamos a Mars na banda. O nosso maior problema é que pensávamos que, pelo fato de ela morar em Araraquara, não aceitaria. O Gil (o então baterista na época), fez o convite, e ela topou! Aí alinhamos ensaios e novas composições. A transição foi muito tranquila, porque os vocais dela, associados aos meus e aos do Marcelo (fazemos os backing vocals) produziram um efeito muito interessante: a minha voz é mais rasgada; a do Marcelo é mais grave; já a voz da Mars consegue variar entre ambos! Resumindo, ela sabe cantar, e eu e o Feijão só arranhamos (risos).
Em 2019 vocês lançaram um split com a banda de blackned crust Nunca. Como se deu essa parceria?
P: O Nunca é uma banda que admiramos muito, composta por três grandes amigos nossos. Em 2018, tocamos com o Nunca pela primeira vez, em Campinas/SP. Fomos a primeira banda a tocar no evento, então tivemos um bom tempo para trocar ideia! O Alcir ficou o tempo todo conosco, conversando sobre o som, sobre bandas, sobre política etc. Isso tudo possibilitou nos aproximarmos, porque percebemos que havia uma sintonia fina em tudo o que dizíamos. Um tempo depois, o Alcir nos fez a proposta de lançarmos um split com o Nunca, e topamos na hora! Criamos um grupo de Whatsapp e fomos alinhando tudo. Aliás, foi um baita trabalho: nós entramos apenas com as nossas músicas e com nossa parte em dinheiro; o Alcir correu atrás da arte, da parte gráfica, da prensagem etc; o Martinho fez o texto (que acompanha o split em formato físico) sobre refugiados; o Nuna, da Nuna Records, entrou com uma parte em dinheiro também, e conseguimos lançar! Ao final, foi um trabalho muito bacana, feito por amigos, por pessoas que se apoiam mutuamente. Isso é um ponto que consideramos muito importante: não há competição, há soma de forças em torno de algo que gostamos de fazer, de algo que acreditamos.
As letras da banda são extremamente politizadas, com temáticas como a escravidão, revolta e ativismo. Quem escreve as letras? Como se dá o processo de composição da banda?
P: As letras foram escritas por mim com inspiração em leituras, vivências e coisas que vejo com amigos ou ligadas ao meu trabalho. Sou assistente social e trabalho na política de saúde daqui de São Paulo/SP atendendo vítimas de violência sexual (infantil/adulto), o que acaba proporcionando uma forma mais desesperada, mais angustiante na hora de compor uma música. Por outro lado, sou estudante de ciências sociais, e isso contribui muito para a escrita das letras: nem sempre o que procuramos é uma politização extrema, mas uma forma de trabalhar os diversos assuntos que nos cercam por meio da estética de cada música, usando metáforas para lidar com os temas. No primeiro registro, a ideia era essa mesma, sem um rumo muito claro: eu aliava algumas das vivências a leituras de antropologia e tentava construir algo em torno disso, que fosse mais poético, mais metafórico e menos direto. Cresci ouvindo músicas que falam de forma muito direta sobre diversos assuntos, principalmente as bandas dos anos 1990 e começo dos anos 2000, que contribuíram imensamente para minha vida como um todo. Só que na Vasen Käsi eu queria fazer algo um pouco mais reflexivo e mais metafórico. Realmente não sei se conseguimos isso, mas é interessante saber que a estrutura lírica de uma música ajuda muito a dizer sobre como ela soará para as pessoas: as músicas são formas expressivas, assim como a fotografia, o vídeo, as artes plásticas etc. Como formas expressivas, elas expressam algo além do imanente: tendem a transcender, e essa é a nossa perspectiva – traduzir nossos sentimentos sobre determinados assuntos de modo que seja algo permanente, que seja uma resposta pessoal sobre como enxergamos problemas que são atuais e que, muito provavelmente, não deixarão de ser com o passar dos anos. É um processo pesaroso escrever sobre essas coisas, mas é uma prática interessante. Hoje, nosso foco é a construção de músicas que estejam mais engajadas na metáfora dos mitos, as estruturas (ou falta delas) e subestruturas que esses mitos implicam na consciência, como por exemplo os mitos gregos, os mitos guarani, os mitos judaico-cristãos etc. Como essas culturas lidam com a ideia de mal? Como elas lidam com a ideia de liberdade? Como elas lidam com o gênero? Esse é o nosso foco, mas sempre buscando levar em consideração nossas próprias posições políticas, nossas formas de ser, agir e estar no mundo, de interagir e nos relacionar com o mundo. Na banda, todxs temos posições políticas bem definidas: somos anarquistas e marxistas, juntos, fazendo música. Posso dizer que temos uma “filosofia” de vida baseada na assertiva de Foucault: a vida anti-fascista vivida como uma resistência cotidiana. Isso tudo implica sobre como fazemos nossa música, sobre como compomos nossas letras e sobre como agimos perante as diversas nuances da realidade.
Foto por Luís Galaverna
Indiquem cinco bandas que possuem o posicionamento ideológico semelhante ao de vocês e que vocês curtam o som no estado de São Paulo e fale um pouco sobre elas.
P: Meu, que pergunta complicada (risos). Só cinco? (risos). Pois bem, vou citar algumas, mas quero deixar registrado que quase todas as bandas da nossa cena (as que não são machistas, racistas, homofóbicas e/ou incoerentes em suas práticas) nos impulsionam a continuar com o que fazemos. Nós, aqui no Brasil, tiramos leite de pedra para fazermos música e música de qualidade, sem “dever” nada para as cenas mainstream (Europa e Estados Unidos), e quando citamos um número limitado de bandas, levamos mais em consideração nossa proximidade, nossa afinidade mesmo, do que por um falso critério de “merecimento”. A primeira que vou citar é a Rastilho, que faz um som fantástico e que traz letras poderosas demais. Desde que conheci o trabalho da Elaine (ainda no Abuso Sonoro), fiquei impressionado com seu envolvimento – suas produções políticas e artísticas -, e o que a banda faz, enquanto conjunto, me inspirou muito. Quando assisti a uma entrevista da Elaine e do Marcelo Papa naquele canal do youtube Meninos da Podreira, percebi que aquilo era algo que me orgulhava muito, porque discurso e prática se alinhavam. Eles me mostraram, sem querer e sem saber, que ainda era possível fazer algo legal na cena. Quando tivemos a oportunidade de conhecê-los, de tocarmos juntos e trocarmos várias ideias, a experiência me proporcionou mais fôlego para continuar. A segunda é a Manger Cadavre?, banda que já tem um tempo de estrada e que produz muito, com letras muito boas e com uma postura muito interessante, coerente. Ainda não tocamos com a Manger, mas em breve isso será sanado, já que tocaremos juntos no Women ‘n’ Crust, em agosto deste ano. O que mais me agrada na Manger é o cuidado do pessoal com as letras: em tempos de niilismo correndo solto pela cena, a Manger faz um trabalho com acuidade suficiente para não deixar a esperança morrer! A terceira é a Nunca, formada por amigos e que possui uma forma sombria de expressar a arte de maneira bastante sólida. A amizade com o pessoal da Nunca nos aproximou e nos ensinou muito sobre cena, sobre história, sobre amizade, sobre como fazer as coisas de forma simples e direta. A quarta banda que quero citar é a Älä Kumarra, banda do meu bairro (Freguesia do Ó) e que possui um som direto, bastante nervoso e feito por gente que também faz a cena acontecer, produzindo shows, organizando eventos etc. São nossos amigos e estamos juntos nessa caminhada! Agora vou quebrar a regra e indicar duas bandas (risos): a 5.1 é a V.I.F. composta por Katharine, Nordson, Karine e a Helô. É uma banda com letras excelentes e com uma formação inclusiva, composta por pessoas amigas, gente que produz um engajamento que vai para além da cena! Nós amamos cada integrante da V.I.F., e a Katarine e o Nordson são pessoas admiráveis, sempre nos apoiando e dando o maior suporte! A 5.2 é aDays of Hate, banda dos nossos amigos Samuel e César. Para quem não conhece, é um duo de noise bastante barulhento, que faz muito estrago e que nos ajudou muito a tocar em vários lugares e com várias bandas diferentes!
Quais foram os festivais que vocês participaram e que mais gostaram até o momento?
P: Participamos de alguns festivais e eles foram muito importantes para nós! Três deles foram decisivos, por vários motivos, e vou listá-los em ordem cronológica: o Massacre Crust, em São Paulo/SP, foi organizado pelo Bonga, e foi uma porta de entrada: conhecemos pessoas de várias partes do Brasil, não apenas de São Paulo! A amizade com o Warkrust vem desse rolê! O segundo foi o Soco na Fuça, em São José dos Campos, que é organizado pela Nata e pelo Marcelo, ambos do Manger Cadavre?, e foi um baita rolê porque, além de ter nos levado a conhecer outra cena, outras bandas, outros lugares, e nos aproximado do pessoal de lá, também foi o último show com o Gil na bateria, marcando o que seria nossa mudança sonora, que veio a acontecer com a entrada do Chis! O terceiro foi o No Gods No Master, que era um sonho: queríamos muito tocar nesse evento por ser construído por práticas das quais acreditamos e que tomamos para nossas próprias vidas. No dia em que tocamos no No Gods, tudo “deu errado”: o Bob se perdeu no caminho, meu amplificador não funcionava e estávamos todxs cansados pra caramba, mas no final deu tudo certo: tocamos, vendemos bastantes CDs e camisas, conhecemos pessoas incríveis e aprendemos muito com todo o processo! Esses três eventos foram de extrema importância para nós, mas, com certeza, todo show é importante e tem suas peculiaridades!
Vocês possuem atividades no cenário independente além da Väsen Käsi?
P: Eu participo de um coletivo (Coletivo V.I.F., que mudará de nome, em breve) com um casal de amigos, a Katarine (V.I.F.) e o Nordson (V.I.F./Katástrofe Social), organizando shows e arrecadações beneficentes. Mas, em termos de cena, minha atuação se encerra aí: banda e Coletivo. Gostaria muito de trabalhar com um selo ou distro, mas não tenho muito tempo para me dedicar. É mais um sonho mesmo, algo que, um dia, farei. Também gostaria muito de editar um zine! Acho que os zines contam muito da história da cena, são formas de registro mesmo, de fazer com que nossa história não seja esquecida.
Considerações finais
P: Quero deixar registrado aqui o meu agradecimento pelo espaço e dizer que em breve teremos muitas novidades: disco novo, nova estampa de camisa, logotipo novo, fotos novas, tudo novo (risos). Quem quiser saber mais sobre a banda, é só procurar por Vasen Käsi no spotify, no bandcamp ou no instagram (@vasenkasivk). Se quiser trocar uma ideia diretamente conosco, pode nos procurar pessoalmente por meio do facebook ou instagram.